Essa semana, vários veículos de imprensa deram a notícia de que uma sonda em Marte que “rodava Windows 98” e foi atualizada. Exemplos:
O que é um mal entendido. Nem a Mars Express, nem nenhuma outra sonda, tem, nem teve no passado, Windows 98.
O que de fato foi feito com a Mars Express?
Um dos instrumentos da Mars Express, o MARSIS (Mars Advanced Radar for Subsurface and Ionosphere Sounding) recebeu uma atualização do seu software. A Mars Express está em órbita de Marte desde 2003 e este instrumento é um Radar capaz de detectar o que há abaixo da superfície. A maior limitação para as observações coletadas por este instrumento estava na quantidade de memória disponível para armazenar os dados internamente. Este novo algoritmo de processamento dos dados que foi implementado é capaz de descartar partes dos dados que não é necessária, aumentando em um fator de 5 vezes a quantidade de observações que pode ser coletada, o que vai trazer uma grande melhoria para a cobertura e resolução das observações futuras.
De onde veio o mito de que a sonda usava Windows 98?
No comunicado oficial da ESA informando o que foi feito, há esta citação (em nossa tradução):
“Nós encontramos muitos desafios para melhorar a performance do MARSIS”, diz Carlo Nenna, engenheiro de software onboard da Enginium, empresa contratada para implementar a atualização. “Um dos desafios sendo o software original ter sido desenvolvido há mais de 20 anos, usando um ambiente de desenvolvimento baseado em Windows 98!”
“We faced a number of challenges to improve the performance of MARSIS,” says Carlo Nenna, MARSIS on-board software engineer at Enginium, who is implementing the upgrade. “Not least because the MARSIS software was originally designed over 20 years ago, using a development environment based on Microsoft Windows 98!”
Note que o engenheiro não disse que o instrumento usa Windows 98. O que usa Windows 98 é o ambiente de desenvolvimento: o conjunto de aplicativos, usados aqui na Terra, para escrever, compilar e testar o código que o instrumento usa.
E por quê esses aplicativos foram feitos para Windows 98? A Mars Express, lançada em 2003, começou a ser construída em 1998. Portanto nada mais natural que os aplicativos usados na época tivessem sido feitos para Windows 98.
Que sistema operacional o MARSIS usa então?
Não é nem Windows, nem MacOS, nem Linux, nem Unix, nem qualquer um dos sistemas que se usa em computadores de mesa, servidores ou laptops. Não tem como ser, por dois grandes motivos:
- Limitações de hardware: O MARSIS tem 3 processadores, cada um operando a uma freqüência de 20 MHz (processadores de uso doméstico operam a alguns GHz, ou seja, alguns milhares de MHz), com apenas 128 KB de memória para o software e 1 MB para execução e dados (computadores, e até mesmo celulares de hoje têm memória de vários GB, e espaço de armazenamento, que inclui software e dados, de centenas ou milhares de GB).
- Estabilidade: Os computadores na sonda precisam funcionar completamente sozinhos, sem qualquer possibilidade de travar, por anos (no caso, já se passaram 19 anos desde que a sonda foi ligada). Porque se o computador travar, a sonda ou instrumento são perdidos, já que ninguém pode ir lá consertar (ou mesmo apenas desligar e ligar de novo). Nenhum destes sistemas operacionais de computadores comuns tem o nível de estabilidade e previsibilidade necessário para isso.
O sistema operacional em uso (chamado VIRTUOSO) é muito mais simples, ele apenas cuida de decidir que tarefas executar, baseado na programação enviada ao instrumento. Ele não tem recursos de sistemas operacionais de computadores domésticos, como interface gráfica, interação com o usuário, contas de usuários, executar qualquer programa arbitrário, lidar com qualquer hardware como placa de rede, teclado, mouse, monitor, impressora, etc. E o código usado pelo MARSIS é até bastante complexo, pois os dados obtidos pelo Radar têm que ser processados por ele, não há capacidade de armazenar e enviar tudo para a Terra. Então a maior parte do trabalho executado é processamento de sinal de Radar, em um código muito específico e muito otimizado para este instrumento.
Por quê os computadores de sondas são limitados? Como comparação para a época, o Windows 98 nominalmente precisa de pelo menos um processador 486 de 66 MHz e 16 MB de memória. Ou seja, qualquer computador de mesa de 1998 era muito mais capaz que os processadores do instrumento. Os principais motivos são 2:
- O processador precisa consumir pouca energia e gerar pouco calor – no vácuo do espaço não dá para usar ventoinhas como em computadores comuns para os refrigerar.
- O processador, a memória e todo os sistemas eletrônicos precisam ser muito robustos, para resistir à vibração do lançamento, às grandes mudanças de temperatura no espaço, e, o mais difícil, operar em ambiente de alta radiação. A radiação recebida pelo computador da sonda é capaz de danificar componentes e mudar valores armazenados na memória (evento chamado de bit flip, em que um raio cósmico faz com que um bit da memória mude, de 0 para 1 ou de 1 para 0). Sem proteção (física ou medidas de software), bit flips podem fazer o instrumento executar a tarefa errada, alterar os dados, ou mesmo travar e ficar inutilizável.
Por estes motivos, em qualquer época os componentes qualificados para uso no espaço são sempre versões muito mais limitadas de componentes que eram usados em computadores comuns anos atrás – porque leva anos para desenvolver e testar um novo componente qualificado para usar no espaço, a partir da versão comum usada em Terra.
O que faz a Mars Express?
Em órbita de Marte desde 2003, a Mars Express realiza continuamente observações de Marte através de vários instrumentos:
- HRSC (High Resolution Stereo Camera) – Imagens coloridas da superfície, com até 2 m de resolução.
- OMEGA (Observatoire pour la Minéralogie, l’Eau, les Glaces et l’Activité) – Espectrômetro de luz visível e infravermelha, usado para determinar composição e mineralogia da superfície, com resolução de até 100 m.
- PFS (Planetary Fourier Spectrometer) – Espectrômetro de infravermelho usado para medir as propriedades da atmosfera de Marte, para mapear sua variação sobre a superfície e observar como varia com o tempo.
- SPICAM (Spectroscopy for the Investigation of the Characteristics of the Atmosphere of Mars) – Espectrômetro de ultravioleta e infravermelho para medir a composição da atmosfera, inclusive através de ocultações de estrelas (observar estrelas através da atmosfera de Marte, para medir a absorção de luz feita pela atmosfera).
- ASPERA (Energetic Neutral Atoms Analyser) – Observa a alta atmosfera de Marte e como ela é afetada pelo vento solar.
- MARSIS (Mars Advanced Radar for Subsurface and Ionosphere Sounding) – O assunto deste artigo, um radar que penetra a superfície. Foi responsável por identificar a presença de depósitos de água líquida 1.5 km abaixo da superfície, na região do polo sul. Este é um instrumento “novo”, ao contrário dos 5 acima, que são cópias dos instrumentos que foram carregados na sonda russa Mars 96, que foi perdida por uma falha no lançamento.
- MaRS, (Mars Radio Science Experiment) – Através das próprias antenas de comunicação, usa os sinais de rádio de comunicação para estudar a atmosfera e o campo gravitacional de Marte e a coroa do Sol (durante oposições de Marte, quando Marte está atrás do Sol, visto da Terra).
Além destes, ela carregava um pousador, o Beagle 2, mas este nunca se comunicou depois do pouso. Imagens dele feitas pelo instrumento HiRISE da sonda Mars Recconnaissance Orbiter indicam que ele sobreviveu ao pouso, mas 2 dos 4 painéis solares não se abriram, bloqueando a antena de comunicações, além de comprometer a geração de energia.
Saiba mais em
Comunicado da ESA sobre a atualização
Artigo científico descrevendo o sistema eletrônico do MARSIS
https://articles.adsabs.harvard.edu/pdf/2003ESASP.532E..36M
Manual do instrumento MARSIS
Site oficial da Mars Express
https://www.esa.int/Science_Exploration/Space_Science/Mars_Express
