O novo plano para trazer amostras de Marte para a Terra

Nessa semana, a NASA e a ESA anunciaram grandes mudanças nos planos da missão que trará as primeiras amostras de Marte para a Terra, a Mars Sample Return (MSR)

Por que trazer amostras de Marte?

Marte é um planeta que mostra ter sido habitável no passado, com sinais de rios e mares, em um ambiente que teria sido mais ameno. Por isso, além do interesse geológico e astronômico em entender a história do planeta, há grande interesse em estudar em detalhes o material na superfície de Marte em busca de sinais de vida, tanto fóssil como presente. Esta poderia ser a primeira descoberta de vida extraterrestre (mesmo se fóssil) e possivelmente a primeira forma de vida independente da vida na Terra. A busca moderna para respostas a estas questões começou com uma prova de conceito – uma missão de pequeno escopo científico, onde o principal objetivo é testar e desenvolver novas tecnologias -, o primeiro rover em Marte, o Sojourner, da missão Pathfinder da NASA, em 1997. Esta permitiu desenvolver rovers muito mais ambiciosos e capazes: os gêmeos Spirit e Opportunity, que operavam autonomamente (sem depender de uma base fixa, como o Sojourner) e que carregavam câmeras, ferramentas e outros instrumentos para serem os primeiros “geológos em Marte”, andando por uma variedade de terrenos e analisando as rochas que encontravam. Eles excederam muito sua missão nominal de 90 dias para percorrer 600 metros – o Opportunity operou por 14 anos, percorrendo mais de 42 km. Descobriram locais onde houve água líquida no passado e abriram as portas para uma missão muito mais ambiciosa, o primeiro laboratório em Marte, o rover Curiosity (inicialmente chamado Mars Science Laboratory). Operando desde 2012, com uma plataforma muito maior e carregando experimentos químicos e espectrômetros muito mais capazes, o Curiosity se concentra em analisar os ambientes mais propícios a ter hospedado vida no passado, procurando por compostos orgânicos e sinais de como era o ambiente e quão propício à vida Marte foi no passado.

Retrato da família. Da esquerda para a direita: Sojourner, Spirit, Opportunity, Curiosity, Perseverance e Ingenuity. Créditos: NASA


Mas mesmo com todo o impressionante repertório de instrumentos e experimentos que o Curiosity carrega, a sua capacidade de análise ainda é muito menor que a de um grande laboratório na Terra. Por este motivo, o próximo passo é trazer as amostras mais interessantes de Marte para análise detalhada em laboratórios na Terra. Note que falamos em analisar as amostras mais interessantes de Marte: não se trata apenas de pousar e coletar a primeira pedra que por acaso estiver por perto. Nós já temos algumas amostras de Marte analisadas em muito detalhe em laboratórios na Terra: os meteoritos marcianos. Mas estes são amostras aleatórias. O que será mais revolucionário para procurar sinais de habitabilidade e vida em Marte é analisar o material dos lugares mais propícios à vida passada, como na foz de rios, onde já houve água. É neste ponto que entra o rover Perseverance, que está operando em Marte desde 2021. Baseado na plataforma do Curiosity, o Perseverance é mais que um laboratório remoto: seu principal objetivo é passar muitos anos andando por Marte, analisando o que encontra para selecionar as melhores amostras e as coletar para então serem levadas para a Terra por uma missão futura.

Três gerações de rovers: Spirit, Sojourner e Curiosity. Créditos: NASA

O que mudou? Por quê?

Trazer amostras para estudar o passado geológico e a possibilidade de vida em Marte é um processo muito longo, envolvendo várias missões. A primeira parte já está sendo realizada, com o rover Perseverance, agora ajudado pelo helicóptero Ingenuity, percorrendo o ambiente de uma antiga foz de rio na cratera Jezero. Em operação desde 2021, o Perseverance tem instrumentos e ferramentas semelhantes aos do Curiosity para identificar e estudar rochas, encontrando e selecionando a melhor variedade, as de mais interesse geológico e biológico. Estas são coletadas com seu sistema de amostragem e seladas em tubos e são as amostras que vão ser trazidas para a Terra. Durante a próxima década, a Perseverance deve encher seus 43 tubos de coleta, os deixando prontos para a viagem para a Terra. É neste ponto que entra a Mars Sample Return, a missão que vai buscar os tubos preparados pela Perseverance.

Primeiro, o que não mudou nos planos: as amostras serão trazidas da órbita de Marte para a Terra pelo Earth Return Orbiter, a ser construído pela ESA. Ele será lançado por um foguete Ariane 6 (uma séria ainda em desenvolvimento, sucessor do bem-sucedido Ariane 5) em 2027, carregando um braço robótico, o sistema de contenção das amostras e a cápsula de reentrada na Terra, estes feitos pela NASA. O Earth Return Orbiter não vai pousar em Marte, ele vai ficar esperando as amostras em órbita de Marte. O transporte das amostras da superfície de Marte para o Earth Return Vehicle será por um foguete, o Mars Ascent Vehicle (MAV), que será enviado da Terra em 2028. Ele será carregado pelo Sample Retrieval Lander, que é o veículo que fará a entrada na atmosfera de Marte e o pouso na superfície, servindo também como plataforma de lançamento para o foguete. Este lander usará um braço robótico, a ser feito pela ESA, para pegar as amostras e as colocar dentro do MAV.

O ponto crítico para a diminuir o risco desta longa missão de duas décadas: a Perseverance vai dividir suas amostras em dois grupos. As primeiras 11, que são as que já foram coletadas até hoje, são amostras duplicadas (portanto ocupando 22 dos 43 tubos). No final de 2022, a Perseverance vai deixar 11 dessas amostras no chão, em um lugar já escolhido propício para pouso (que será conhecido como o depósito de segurança). As outras 11 amostras vão permanecer dentro da Perseverance, que vai continuar coletando novas amostras ao longo dos próximos 10 anos, até completar todos os seus tubos, ficando com 32 amostras armazenadas nela. O motivo é redundância: depois que estas 11 amostras forem deixadas no chão, daqui a alguns meses, elas estarão seguras. Se a Perseverance parar de funcionar completamente, ficando incapaz de coletar mais, e mesmo incapaz de liberar as amostras já guardadas nela, estas 11 que vão estar deixadas no chão já vão estar garantidas.

O elemento restante da missão é o que foi alterado agora: como transportar as amostras sendo coletadas pela Perseverance, para o alcance do braço robótico no Sample Retrieval Lander. Quando a missão foi inicialmente concebida, o plano era levar com o Sample Retrieval Lander um pequeno rover, a ser feito pela ESA, chamado de Fetch Rover. Este poderia andar até o local onde vão estar as 11 amostras deixadas no depósito, ou até a Perseverance, para pegar as amostras dela, caso a Perseverance estivesse incapacitada de se mover. A última análise desta proposta revelou que levar o Fetch Rover necessitaria de um pouso separado em Marte, pois seria grande e pesado demais para levar junto do Retrieval Lander. Isso aumentaria bastante a complexidade e risco da missão. Então, nos últimos meses, o centro JPL da NASA realizou um estudo baseado na performance dos rovers Curiosity e Perseverance e do helicóptero Ingenuity – que é apenas um demonstrador de tecnologia que acompanhou a Perseverance -, e concluiu que será mais seguro usar o que agora é o novo design:

  • Abandonar a idéia do Fetch Rover – e do segundo pouso que seria necessário, só para o carregar.
  • A Perseverance, com as 31 amostras que vão estar dentro dela, passa a ter a responsabilidade primária de levar os tubos até o Retrieval Lander. A análise dos 10 anos da Curiosity (um veículo com a mesma base da Perseverance) e do 1 ano da Perseverance deu alta confiança de que ela vai ser capaz de levar as amostras, mesmo daqui a 10 anos.
  • Novo plano de backup, para o caso de a Perseverance não conseguir levar as amostras até o local de pouso do Retrieval Lander: o lander vai levar dois pequenos helicópteros. Eles serão baseados no desenho do Ingenuity, com a adição de um pequeno braço robótico capaz de pegar os tubos de amostra. E terão rodas, para se mover distâncias pequenas em volta das amostras e do lander com precisão e com os rotores do helicóptero desligados (para evitar que estes possam colidir com os tubos ou o lander). Esse novo meio de backup, muito menor, mais leve e rápido que o Fetch Rover, se mostrou um design viável e confiável no último ano, com base em tudo que foi aprendido com a operação do Ingenuity – que é apenas um demonstrador de tecnologia, feito para 5 vôos ao longo de um mês, mas já executou 29 vôos em um ano e meio e continua operando muito bem.

Esta imagem representa todos os elementos que vão colaborar para trazer as amostras:

Vários elementos juntos para trazer as amostras para a Terra. O novo helicóptero, o rover Perseverance, o Sample Retrieval Lander, o Mars Ascent Vehicle e o Earth Return Orbiter.
Créditos: NASA/JPL-Caltech

Em que estado está a missão?

Com este novo plano, a MSR está agora no final da sua chamada fase A – design conceitual. É nessa fase em que são consideradas várias alternativas de estratégias para a missão e são realizadas simulações, testes e análises para avaliar retorno científico, prazo, custo e risco de cada alternativa e chegar a uma decisão de como a missão será feita. O resultado foi a definição dos elementos da missão como descritos acima. Em outubro se inicia a chamada fase B – design preliminar -, que terá um ano de duração, durante a qual se trabalha em elaborar o design de todos os elementos críticos para cumprir os objetivos da missão. Ao final da fase B, será feita uma avaliação detalhada por um comitê independente, o Critical Design Review (CDR), para identificar todas as lacunas a serem preenchidas e mudanças que precisam ser feitas no design para garantir o sucesso da missão. Sendo aprovada no CDR, a missão pode prosseguir à fase C – design final e fabricação dos componentes -, a partir do final de 2023.

O Mars Ascent Vehicle é de responsabilidade do centro Marshall, da NASA, que em 2022 acaba de conceder o contrato à empresa Lockheed Martin para sua construção.

O rover europeu Rosalind Franklin foi cancelado? Qual a sua relação com a MSR?

Essas são perguntas comuns dadas as circunstâncias, com a eliminação do fetch rover a ser construído pela ESA e as notícias sobre os problemas com o rover europeu Rosalind Franklin. Mas se trata de missões diferentes, de rovers diferentes. O Rosalind Franklin nunca fez parte do projeto MSR, é uma outra missão. É um rover laboratório, pouco maior que Spirit e Opportunity, menor que Curiosity e Perseverance, com instrumentos voltados especificamente para procurar sinais de vida passada em Marte. Originalmente chamada ExoMars, ela foi renomeada em homenagem à pesquisadora britânica Rosalind Franklin, a pioneira da pesquisa de biologia molecular. Seu trabalho permitiu a descoberta da estrutura do DNA, pela qual ela não compartilhou o prêmio Nobel dado a Watson e Crick em 1962, 5 anos após sua morte. A continuação do seu trabalho levou seu colaborador a receber outro prêmio Nobel, em 1982.

A missão foi aprovada pela ESA em 2014, para lançamento em 2018. Atrasos na construção levaram a data do lançamento para a janela de 2020 (lançamentos para Marte só são viáveis durante janelas que ocorrem uma vez a cada 26 meses). Mas no começo de 2020, as dificuldades trazidas pela pandemia fizeram com não fosse possível o terminar a tempo para usar a janela de 2020, adiando-o para 2022. Em 2022, a ESA tomou a decisão de interromper a colaboração com a Roscosmos (da Rússia), devido à invasão da Ucrânia, o que deixou a missão atualmente indefinida. A Rússia iria prover o foguete para o lançamento e o veículo para fazer o pouso do rover em Marte. No momento, as opções de como completar a missão estão sendo analisadas, em conjunto com a NASA, e as propostas serão avaliadas na próxima reunião do conselho dos Estados-membros da ESA, no final de 2022. A única relação das mudanças na MSR com o Rosalind Franklin é que não sendo mais necessário trabalhar no fetch rover para a MSR, a ESA agora terá mais recursos para dedicar ao Rosalind Franklin.

Cronograma atual

DataDescrição
2020Lançamento do rover Curiosity
2021Pouso do Curiosity, carregando consigo o helicóptero Ingenuity
2021-2032Exploração do ambiente em Marte e coleta das amostras de materiais mais interessantes pelo Curiosity, acompanhado pelo Ingenuity (enquanto este durar)
2022Selecionada a empresa Lockheed-Martin para a construção do Mars Ascent Vehicle
setembro/2022Conclusão da fase A (design conceitual) da MSR
fim de 2022Armazenamento das primeiras 11 amostras coletadas pelo Perseverance em um local de onde podem ser retiradas no futuro, caso haja problemas com as amostras dentro do Perseverance
setembro/2023Conclusão da fase B (design preliminar) da MSR e revisão (Critical Design Review)
2027Lançamento do Earth Return Orbiter
2028Lançamento do pacote com o Sample Retrieval Lander, Mars Ascent Vehicle e helicópteros
2031Saída de Marte para o retorno à Terra
2033Chegada das amostras à Terra

Mas a China ou a SpaceX não anunciaram que vão fazer isso antes de 2033?

Sobre as missões da China: Nós (a equipe do Aerospace Today) não temos informações além das ocasionais notícias dadas por terceiros na imprensa, principalmente por não termos familiaridade com as instituições e processos envolvidos, nem poder consultar as fontes originais (por estarem escritas em chinês). Então não podemos comentar muito sobre quais são os planos futuros da China nem quando vão acontecer.
Sobre a SpaceX: a empresa até o momento nunca manifestou interesse na exploração científica de Marte. Tudo que ela divulgou até hoje é intenções vagas de construir colônias humanas, sem apresentar projetos concretos com especificações de como iriam lidar com os muitos problemas de engenharia que precisam ser resolvidos. Então não é possível saber o que ela iria fazer, nem quando o faria, nem mesmo quais as chances de a empresa ainda existir ou ainda ter o interesse nestes projetos durante os muitos anos ainda necessários para chegar a estes objetivos. Apenas é claro que ainda há muitos passos, enormes (que portanto levam muitos anos) a ser completados antes que haja qualquer possibilidade de a SpaceX colocar humanos em Marte.

Também é importante notar que não é uma corrida. O objetivo da missão não é fazer antes de todos os outros. O objetivo é trazer amostras diversas e relevantes que revelem a história de Marte, principalmente como era o ambiente no passado e se há sinais de vida – não simplesmente trazer a primeira pedra encontrada no local de pouso. E se outros também trouxerem amostras para estudo, melhor ainda.

Saiba mais em

Coletiva de imprensa sobre o novo design da missão

Anúncio do novo design

https://www.nasa.gov/press-release/nasa-will-inspire-world-when-it-returns-mars-samples-to-earth-in-2033

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